quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Este texto é de 2006, foi para uma aula de produção de textos do curso de rádio e tv, a proposta era fazer uso da metalinguagem

Sádico
Sempre quis escrever. Lia contos compulsivamente, pois me disseram que se eu entrasse em contato com uma grande diversidade de contos aprenderia a escrever. Nunca deu certo.
A minha vida não me favorecia, tudo muito pacato, sem grandes emoções. Eu ia falar sobre o quê? Relatar a minha rotina seria a coisa mais desagradável de se ler... nem meus sonhos são intrigantes...
Estive sozinho a vida toda. A infância passei dentro de meu quarto; a adolescência nas ruas perambulando e agora moro com minha mulher, na mesma casa que vivi todo o tempo, na famosa rua Saint-Honoré.
Nunca pude compartilhar nada com ninguém, então tentava conversar com os papéis, gastei muita tinta, mas nada de útil produzi, somente pensamentos perdidos.
Casei-me cedo, por convenções familiares. Ela não me atrai, nem ao menos gosto de olhar para o seu rosto. Mas sinto um ciúme doentio. Não a deixo fazer muitas coisas, ela fica quase o dia todo em casa lavando minhas roupas, às vezes, ela fica na loja que herdei de meu pai, que é nossa única fonte de renda.
Odeio a loja. As pessoas que ficam entrando e saindo de lá e me tratando como se eu fosse um velho conhecido.
Tudo não passa de um jogo de interesses: eu quero o dinheiro deles e eles querem descontos.
Os livros já não me atraem, creio já ter lido tudo. Não existe nada de novo sendo produzido, as histórias vêm se repetindo de modo enfadonho e monótono. O ser humano não tem mais nada a fazer. Só resta esperar pelo fim. Não conseguiremos fazer mais nada de útil, pois cada dia fica comprovado que o que realizamos até aqui foi em vão.
Anseio uma forma de sair desse vazio, sentir o desejo invadir minhas veias. Estou cansado de mim mesmo. Aquelas mulheres mundanas com quem sempre saí nunca me deram muito mais que entretenimento barato, sempre as encontrava para passar o tempo e nada mais que isso. Minha mulher nunca me deu prazer.
Certa vez, tarde da noite, caminhando pelas ruas após sair de um bar qualquer, vi uma casa iluminada por velas. Havia uma festa. Aproximei-me e perguntaram meu nome. Menti e disse Sade. Eles me deixaram entrar. O ambiente era repleto de belas mulheres e homens seminus. Tudo me parecia provocante.
Não entendia muito bem o porquê de estar ali nem porque eles me deixaram entrar com tamanha facilidade... Aquela festa parecia muito reservada.
As pessoas me olhavam com desejo, e isso, naturalmente, me deixava excitado.
Em meio ao silêncio uma música começou a tocar, formou-se uma roda no meio do grande salão. Todos ganharam máscaras, menos eu, que fiquei só os observando. Começaram a dançar, como um baile de debutante. Às vezes, me encaravam, podia ver seus olhos pelas máscaras.
O medo e a excitação se misturaram e tomaram conta de mim. Quis, por um instante, ir embora, mas não havia nada a perder e aquele era, sem dúvida, o momento mais instigante da minha vida.
Começaram a se beijar, inicialmente na nuca, no rosto e depois uns invadindo os outros só com os lábios, sem as mãos, e dançavam; continuavam acompanhando o ritmo da música; queriam uns aos outros com uma força muito mais ardente do que qualquer romance que tivera lido.
Desejava estar entre eles, mas ao mesmo tempo só os observar era suficientemente prazeroso para mim. Continuaram se lambendo, se beijando, sem tirarem suas vestes, empurrando-as com a língua, deixando-as ardentemente molhadas, algumas de tão lambuzadas transpareciam e mostravam partes dos corpos arrepiados.
Uma cadeira foi colocada no meio do salão. Duas mulheres, eram as únicas sem máscaras, a levaram até lá. Sentei. Senti um calafrio passar pelo meu corpo todo, elas eram magnificamente bonitas, tinham lábios vermelhos e estavam com vestidos quase transparentes.
Quando me sentei no meio, tudo se intensificou. Ouvia gritos que não sabia de onde vinham, algumas pessoas entraram vestidas de preto com chicotes na mão, começaram a bater nos que já estavam na roda os quais, quanto mais apanhavam, mais se excitavam, mais queriam uns aos outros.
Roupas eram arrancadas com os dentes, e não havia distinção entre homem e mulher, todos se excitavam, todos se envolviam uns nas pernas dos outros.Ouvi um grito de prazer, um gozo...
A música terminou. Todos se viraram para mim e iniciaram o que parecia um ritual. Senti um forte cheiro de perfume de rosas. Estava inebriado, fechei os olhos por um instante, até sentir algo gelado em minha orelha, ao abrir os olhos vi uma mulher que passava algo frio pelo meu corpo, ia levantando minha camisa e me invadindo com suas mãos gélidas, não parava de olhar fixamente para os meus olhos.
Não posso descrever o que sentia, o salão se esvaziara muito rapidamente. Ouvia apenas os gemidos e a sua respiração que me tocava todo o tempo. Sentia pavor e o pouco de racionalidade que ainda restava em mim tinha um medo imenso daquilo tudo, de não saber o que aconteceria, mas meu corpo não se importava, respondia às provocações.
Queria beber, me desligar de tudo, me entregar. O seu gemido ficava cada vez mais forte.
Em poucos instantes estava totalmente anestesiado, a única coisa que conseguia sentir era um desejo incontrolável, queria tirar a sua roupa com os dentes, beijar aquela boca e aqueles seios, e farto de tanto desejo, gozar, sentir-me aliviado e cansado de invadir aquele corpo.
Mas ela não permitia que a tocasse e eu estava preso à cadeira.
Ouvi uma voz ao fundo, uma voz grave e alta, mas não conseguia compreender...
Colocaram uma mordaça na minha boca. Fiquei aflito, respiração ofegante... A voz grave foi se aproximando, mas não podia ver de quem era.
-Mantenha-se calmo senhor Sade, mantenha-se calmo. Disse a bela moça que não parava de me acariciar.
Pouco depois, após um momento de silêncio, pude compreender o que a voz masculina dizia:
-“Uma belíssima burguesa da rua Saint-Honoré, de aproximadamente vinte e dois anos, gorduchinha e roliça, carnes as mais viçosas e apetitosas, todas as formas modelares ainda que um pouco cheias, e que acrescentava a tão fartos encantos presença de espírito, vivacidade, e gosto o mais aguçado por todos os prazeres que lhe proibiam as rigorosas leis do himeneu, decidira, havia quase um ano, arranjar dois ajudantes para seu marido que, sendo feio, a ela não somente desagradava muito, como também cumpria mal, se não raramente, os deveres que, talvez, com um pouco mais de desempenho, poderiam acalmar a exigente Dolmène”
Ahhh.... Como eu quis gritar... Não podia... Não conseguia entender tudo aquilo... Eles sabiam que eu não era o tal Sade?!! Sabiam onde eu morava, e quem era minha mulher?! O homem com a respiração, um tanto conturbada, continuou:
-“assim se chamava nossa bela burguesa. Nada mais bem combinado do que os encontros marcados com esses dois amantes: Des-Roues, jovem militar, ficava normalmente das quatro às cinco horas da tarde e das cinco e meia às sete chegava Dolbreuse, jovem negociante com o rosto mais bonito que se pode ver. Era impossível fixar outros momentos; eram os únicos em que a sra. Dolmène estava tranqüila: de manhã, era preciso estar na loja e, à tarde, também tinha de aparecer por lá algumas vezes, ou então o marido voltava, e deviam falar de seus negócios. Por sinal, a sra. Dolmène havia confidenciado a uma de suas amigas que ela gostava muito que os momentos de prazer se sucedessem assim muito próximos um do outro: a chama da imaginação não se apagava, ela assegurava; desse modo, nada mais temo do que passar de um prazer a outro; não era difícil retomar a ação, pois a sra. Dolmène era uma criatura encantadora que calculava ao máximo todas as sensações do amor; pouquíssimas mulheres conheciam-nas como ela própria e, em virtude dos seus talentos, reconhecera que, depois de muito meditar, dois amantes valiam muito mais do que um; com respeito à reputação, era quase a mesma coisa, um encobria o outro; poderiam se equivocar, poderia ser sempre o mesmo a entrar e sair várias vezes durante o dia, e com relação ao prazer, que diferença! A sra. Dolmène, que temia em particular a gravidez, bem segura de que seu marido jamais com ela cometeria a loucura de lhe arruinar a cintura, havia igualmente imaginado que, com dois amantes, havia muito menos risco, quanto ao que temia, do que com um, porque, dizia ela, na condição de excelente anatomista, dois frutos se destruíam mutuamente.”
Eu estava preso àquela maldita cadeira, e cada vez que ele repetia o nome de minha mulher, falava alto e mais próximo de meus ouvidos : Dolmène,Dolmène...Era a minha própria estória! A minha esposa estava nela e os meus conhecidos do mercado! Mas não podia acreditar naquilo tudo... Ele não parava nem um instante de contar:
-“Certo dia a ordem fixada nos encontros veio a se alterar, e nossos dois amantes, que nunca se tinham visto, conheceram-se de maneira engraçada, conforme mostraremos. Des-Roues foi o primeiro, mas chegara muito tarde, e como se o diabo tivesse se intrometido, Dolbreuse, que era o segundo, chegou um pouco mais cedo.”Não, não podia mais suportar aquilo... Precisava sair dali o mais rápido possível.... Não acreditava, não podia acreditar! Percebendo minha agitação, o suor escorrendo pelo corpo, o homem que falava se aproximou , lambeu a barriga, e próximo ao meu rosto disse :
- Eu sou o Marques de Sade! Distanciou-se e continuou :-“O senhor percebe de imediato que, da combinação desses dois pequenos erros, deveria acontecer, infelizmente, um encontro infalível: e assim sucedeu. Porém, mencionaremos como isso se deu e, se possível, ocupemo-nos desse assunto com toda decência e moderação que tal assunto já por si muito licencioso, exige.Por obra de um capricho bastante bizarro - mas tão comum entre os homens - nosso jovem militar, cansado do papel de amante, quis, por uns momentos, representar o da amante; em lugar de ser amorosamente abraçado por sua divindade, quis, por sua vez, abraçá-la: em resumo, o que está embaixo, coloca-o em cima, e, por essa inversão de posição, inclinada sobre o altar onde normalmente se oferecia o sacrifício, era sra. Dolmène que, nua como a Vênus calipígia, e encontrando-se estendida sobre seu amante, apresentava, diante da porta do quarto onde se celebravam os mistérios, o que os gregos adoravam com devoção na estátua que acabamos de mencionar, essa parte mui bela que, em suma - sem sair à procura de exemplos tão remotos - encontra tantos adoradores em Paris. Tal era a atitude quando Dolbreuse, acostumado a entrar sem dificuldade, chega cantarolando, e vê por um ângulo o que uma mulher verdadeiramente honesta não deve, segundo dizem, jamais mostrar.O que teria causado grande prazer a muitas pessoas fez com que Dolbreuse recuasse.- O que vejo? - exclamou - ... traidora... é isso que me reservas?A sra. Dolmène que, naquele momento, se encontrava numa dessas crises em que uma mulher age infinitamente melhor do que raciocina, resolve mostrar-se audaciosa:- Que diabo tens tu? - diz ela ao segundo Adônis - sem deixar de se entregar ao outro - não vejo nisso nada que te cause muito pesar; não nos perturbes, meu amigo, e contenta-te com o que te resta; como bem podes notar, há lugar para dois.”Dolbreuse, não conseguindo deixar de rir-se do sangue-frio de sua amante, pensou que o mais simples era seguir o conselho dela, não se fez de rogado, e dizem que os três lucraram com isso.”Não eu não podia acreditar naquela estória...- Parem com isso! São todos loucos! Insanos! Ela me pertence!!!Você não sabe nada sobre ela. É tudo uma imensa mentira!Eu sei!-Querido?-Não! Não, parem!!- Querido, o que esta acontecendo?- Você está aqui?!...-Claro, acabei de chegar da loja.- Loja? Onde eu estava?- Ora, meu marido, você estava aqui, sentado escrevendo. Quando cheguei da loja você estava ofegante olhando para os papéis.-Eu escrevi? E aquele livro ali sobre a cabeceira?-Não sei, parece que você nem ao menos tocou nele. Chama-se “Contos libertinos” de Marquês de Sade. Por um momento, cheguei a acreditar que havia produzido algo, mas não, realmente não consegui. Até meus delírios já foram escritos. Caminharei até a morte sem ao menos deixar uma folha de papel com algo instigante escrito por mim. Continuo fazendo parte dessa humanidade sem sentido.

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