sexta-feira, 5 de novembro de 2010

A comunicação e a valorização da cultura


A comunicação é um campo de tensões, assim como a cultura. Sobre ambos os termos existem inúmeras leituras e pesquisas, o que demonstra a relevância destas práticas para a compreensão da sociedade e também como elementos que carregam possibilidades de transformação social.
Inicialmente é imprescindível compreender a cultura e a comunicação de forma abrangente, como parte das relações sociais inseridas em um contexto histórico e que contém em si características específicas.
Cultura não como um lugar em que se produzem bens simbólicos, conceito difundido com a industrialização, em que há a concepção de bem cultural como mercadoria. O termo remete às relações sociais, às recriações, aos diálogos com outras manifestações e as possibilidades de expressão criadas por determinado povo.
As divisões entre o que é cultura popular, erudita, subalterna e tantas outras nomenclaturas reforçam a idéia de cultura como lugar específico, intocável e também reforçam a concepção da existência de uma determinada cultura superior a outras.
Não se trata de ignorar que a cultura é um campo construído na cotidianidade em que se revela a distribuição desigual de bens tanto simbólicos, quanto materiais, mas sim de compreendê-la, como um campo de lutas, de diálogos, adaptações e transformações.
O pesquisador argentino Nestor García Canclini define a cultura como um conjunto de processos material simbólicos, onde é possível compreender, reproduzir e transformar toda a estrutura social.
Não há homogeneidade cultural dentro das classes sociais, não há uma cultura popular pura e autônoma. Como bem afirma Maria Nazareth Ferreira, na cultura das classes subalternas convivem as raízes ancestrais, as influências das classes hegemônicas e as características de sua realidade social.
Para buscar as relações entre comunicação e cultura, torna-se necessário entender o conceito de hegemonia, que permite uma análise das relações políticas, sociais e culturais no campo da comunicação de maneira não determinista. O conceito desenvolvido por Antonio Gramsci coloca o caráter inseparável entre as dimensões sociais e culturais, compreendendo que é no campo da sociedade civil que a hegemonia é construída e mantida através das mais variadas relações de poder.
Dentre as ferramentas da manutenção do consenso estão os meios de comunicação que divulgam os discursos do poder e cada vez mais assumem outras funções, ganhando mais importância na sociedade contemporânea. De acordo com Marilena Chauí, uma das maneiras mais eficazes para a manutenção do poder é estabelecer uma unificação entre a realidade e as representações acerca delas. Há, portanto, um esforço por parte das elites para tratar as desigualdades como algo não conflituoso, para não conceder espaço para as manifestações da diferença e para as contradições sociais. Dessa forma, a desigualdade aparece como sinônimo de diversidade, como fator comum dentro da construção de uma suposta cidadania. Esta estrutura de relações complexas, em que a dominação permanece oculta e como algo instransponível, remete a toda a concepção histórica da Modernidade. A complexa construção dessa etapa histórica que chega aos nossos dias, tem início por volta de meados do século XVI e teve grande impulso com os ideais do Iluminismo. Posteriormente caminhou ao lado ou junto ao ideário que consolidaria a sociedade capitalista, como formação social e ao liberalismo como proposta política da crescente burguesia. Essas aproximações,  e até mesmo confusões, geraram formas regulatórias que fizeram com que os ideais de emancipação, herança do Iluminismo, se tornassem cada vez mais distantes, reforçados com uma sociedade que mais se caracteriza pela desigualdade, alienação e exploração do que pela liberdade, igualdade e fraternidade.
O conceito de cidadania que vai ganhando novas leituras, desde suas origens na Antiguidade Clássica, tem no sociólogo Thomas Marshall, uma de suas teorizações mais aceitas embora sua leitura também é passível de críticas e pode ser complementada dentro da própria concepção de que cidadania é um conceito e uma prática política em construção, que acompanha tanto peculiaridades de cada sociedade como os avanços históricos. Para Marshall a cidadania é colocada como a participação integral do individuo na comunidade política e o reconhecimento dos direitos e deveres dos cidadãos para com o Estado, em que cidadão seria aquele que detém os três direitos: civis (liberdade individual), políticos (participação política ampla) e sociais (bem estar).
Dentre estes direitos está embutido, ainda que tantas vezes passe desapercebido, o direito à comunicação. Direito este que não pode ser compreendido apenas como o acesso aos meios de comunicação, mas também, como direito a comunicar-se, direito de expressão de ideias, de construção de diálogos entre um grande número de pessoas. Isso implica também, na contemporaneidade,  o direito e a possibilidade de criar, gerir e ou administrar os chamados “meios de comunicação”, os mecanismo de comunicação coletiva, rádio, TVs, jornais, revistas, sítios eletrônicos.
O direito à comunicação é fomentador da cidadania. Os dois conceitos estão entrelaçados porque a comunicação, tanto individual como coletiva, quando exercida e  utilizada democraticamente, permite compreender os diferentes códigos, as diversidades de pensamento, enfim, a riqueza e a complexidade presentes na sociedade.
Ao observar os meios de comunicação na América Latina e sua profunda concentração nas mãos das classes hegemônicas, compreende-se como a concepção de Gramsci de inseparabilidade do mundo econômico e do mundo político é necessária não só para compreender a sociedade, mas para criar mecanismos de transformação.
Apesar da democratização da comunicação ser assunto debatido há décadas e estarmos distantes de sua consolidação, por inúmeras dificuldades, entre elas o fato do Estado não ver (ou não querer ver) a comunicação como algo tão importante quanto os outros direitos básicos, muitos países caminharam e conseguiram rever suas leis de radiodifusão como a Argentina, Venezuela, Uruguai e Equador.
Esses avanços, que são divulgados pela grande mídia brasileira como ataques à liberdade de imprensa, são na realidade passos concretos para a diversidade comunicacional, para o sentido coletivo e democrático de expressão.
Não há construção efetiva da cidadania cultural sem que as múltiplas vozes tenham direito de expressão. Ainda que pesquisas comprovem que haja espaço, mesmo que limitado, para os interesses das classes sociais subalternas na grande mídia, os dados somente comprovam a teoria gramsciana, de que as classes hegemônicas reafirmam a ideologia de uma sociedade democrática também através de pequenos espaços de concessão aos interesses das classes subalternas.
Uma revisão da história da imprensa, ou da mídia em um conceito ampliado, permite perceber que a sociedade sempre buscou novas formas de se comunicar, de construir meios alternativos de comunicação. Esta busca assume hoje novos espaços, novas linguagens e novos meios com a Internet e apesar das ainda visíveis dificuldades de acesso à rede, são espaços que não podem ser ignorados nesta caminhada pela democratização, porque são instrumentos políticos que  podem ser apropriados pelas minorias. Minorias aqui compreendidas a partir de Muniz Sodré, para quem minoria é um lugar de transformações das identidades e das relações de poder.
O ideal de democratização dos meios de comunicação massiva passa por uma revisão do próprio conceito de comunicação, que não pode mais ser compreendida verticalmente. As próprias universidades de comunicação dificultam o processo de democratização, por não conceberem a comunicação como instrumento político de transformação social. Em sua grande maioria, os cursos de comunicação apresentam espaços limitados para reflexão e, em função disso, revelam profissionais da área que não conseguem analisar a realidade e, como se sabe, sem a crítica não há transformação.
A comunicação, portanto, não só dialoga mas é algo indissociável da cidadania e da cultura, mas para que este diálogo e esta relação sejam efetivamente democráticos é necessário rever as características das relações políticas e sociais e compreender que toda prática relacionada ao universo que compreende a cultura e a comunicação tem um caráter político, no amplo sentido, que pode ser transformador.

(colaboração: prof. Silas Nogueira)

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