quarta-feira, 17 de junho de 2009

REFLETIR SOBRE O JORNALISMO


Um olhar sensível sobre o outro, uma maneira de contar histórias que apaixona até os mais céticos. A jornalista Eliane Brum segue a profissão de repórter como um sacerdócio, acompanha as vidas, narra com sensibilidade e utiliza as ferramentas da língua a favor do leitor.
Eliane iniciou sua trajetória como repórter no jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre e desde 2000 é repórter especial da revista “Época”, em São Paulo. É uma das mais premiadas jornalistas brasileiras. Ganhou mais de 40 prêmios de reportagem, como Esso, Vladimir Herzog, Ayrton Senna, Prêmio Açorianos, Sociedade Interamericana de Imprensa e Jabuti. É autora de três livros: “Coluna prestes – o avesso da lenda” (1994, Artes e Ofícios), no qual refez a marcha do exército rebelde pelo país entrevistando uma centena de testemunhas, “A Vida que Ninguém Vê” (2006, Arquipélago Editorial), uma coletânea de crônicas – reportagem publicadas no jornal “Zero Hora” que relatam histórias de pessoas que parecem ter saído de um livro de ficção e sua última publicação lançada em novembro de 2008: “O Olho da Rua” ( editora Globo), que é também um livro de textos já publicados, mas todos com comentários inéditos sobre o processo de desenvolvimento da reportagem.
Os textos que compõem este último livro foram escolhidos pela própria autora como as histórias que mais geraram reflexões sobre a sua prática, o que acaba sendo um balanço de sua atuação profissional nesses 20 anos.
Confira a entrevista:

- Como nasceu sua paixão pelo jornalismo?
Acho que começou com a paixão por ouvir histórias. Meu pai sempre valorizou as pequenas histórias e sempre que visitávamos algum lugar, antes ele nos contava a história daquele lugar e daquelas pessoas. Então eu sempre soube que eram as histórias que teciam a trama da vida, que não havia vida sem memória. Entendia isso intuitivamente quando era criança.
Sempre fui mais de olhar e ouvir do que de falar. Então ficava quietinha observando tudo que acontecia.
Não relacionava isso com Jornalismo, porque quando era criança e adolescente achava jornal muito chato, não encontrava as pessoas nele. Achei que seria historiadora, mas no curso de História também não encontrei as pessoas. Fazia História e Jornalismo ao mesmo tempo, em universidades diferentes (UFRGS e PUC/RS), mas fazia o Jornalismo sem convicção.
No final do curso conheci um professor, Marques Leonam, que mudou minha vida. Ele me mostrou que reportagem era justamente contar histórias de gente. Fiz uma reportagem para a aula dele sobre todas as filas que a gente entra desde o nascimento até a morte. Essa reportagem ganhou um concurso universitário e o prêmio era um estágio na Zero Hora, principal jornal de Porto Alegre. Fiquei lá 11 anos e descobri que era apaixonada pelo jornalismo.
Ser repórter é um jeito de estar no mundo. Não é o que faço, é o que sou.



- Sua visão sobre o jornalismo mudou nestes anos de profissão? ( Pensando que a sua prática é diferente da que é comumente visto no jornalismo e dentro do ensino universitário, com o uso do lead, textos objetivos....)

Eu sempre fui mais intuitiva do que qualquer outra coisa. E sempre fui intuitivamente avessa a qualquer molde, fórmula ou coisa parecida. Essas coisas fazem com que me sinta asfixiada e quero imediatamente me livrar delas. Então sempre escrevi minhas reportagens do jeito que eu gostaria de ler. A diferença é que o que antes era intuição, hoje consigo racionalizar. Isso aconteceu porque comecei a escrever livros e a fazer palestras. Tive então de começar a pensar sobre a prática do jornalismo de uma outra maneira.
Eu acredito que, como jornalistas, contamos a história cotidiana do país. O que fazemos é documento. E é com essa responsabilidade que faço o meu trabalho, seja uma nota ou uma matéria de 20 páginas.
Acredito na apuração ampla da realidade, onde não apenas as palavras, mas o silêncio, os cheiros, as texturas, os gestos, os sons, a luz, tudo é informação. Nosso trabalho é dar todas essas informações ao leitor, levar a ele toda a complexidade do real, de forma que ele possa estar onde estivemos e, a partir daí, tirar suas próprias conclusões. E acredito que, com todas as informações, completas e precisas, conseguimos escrever um texto que o leitor possa ler com o prazer de uma ficção.


- Como você encontra suas pautas? Como elas são discutidas na redação da revista?
A cada pauta que eu faço, encontro pelo menos outras três. As pautas surgem na rua, que continua sendo o lugar de repórter. Tento sempre responder à pergunta: qual é o melhor jeito de contar essa história? E tento me desafiar, sair da zona de conforto, fazer coisas que nunca fiz ou de um jeito diferente do que já fiz. Discuto minhas pautas com o diretor de Redação. Em geral, tenho bastante autonomia.


- Qual reportagem foi mais marcante? Por quê?
São muitas. Eu sempre faço cada reportagem como se fosse a reportagem da minha vida. Enquanto faço, só penso nela. Costumo dizer que fico grávida das matérias. E, como sou muito literal, é assim mesmo que me sinto. Tenho alterações de humor. E o parto é quando escrevo. Aí elas saem de mim e eu fico um tempo sentindo um vazio enorme. Até a próxima matéria grande.
Tem um custo pessoal alto, mas não sei ser de outro jeito. Nem quero.
A reportagem recente mais marcante foi quando acompanhei os últimos 115 dias de uma mulher extraordinária chamada Ailce de Oliveira Souza, no ano passado. A Ailce me deu a maior prova de confiança que eu já recebi: confiou em mim a ponto de me deixar testemunhar o fim da sua vida e contar uma história que ela jamais leria. A construção dessa reportagem, na relação cotidiana com Ailce, mudou meu jeito de lidar com a morte – e com a vida. Na verdade, me virou do avesso. Eu conto essa história – e a história dentro da história – no último capítulo de “O Olho da Rua”.

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